Resolveram dormir juntas, as duas na cama imensa.
O aperto no peito parecia saudade antecipada. Surpresa e impotência caminham juntas nessas horas. Sem combinar foram se chegando, vestindo pijamas e perplexidade. Mãe e filha, entranhas.
No escuro começaram a conversar coisas banais porque nada é mais reconfortante que a retomada do ritmo familiar. Os assuntos surgiam sem pompa nem cerimônia. Lembranças, casos, frivolidades, reflexões. Às vezes, davam-se as mãos ou brincavam com o cabelo da outra. Comentários politicamente incorretos, vida alheia, fofocas. Perguntas que estavam há muito guardadas foram feitas sem meias palavras. Histórias de quando era pequenas foram lembradas. Episódios inéditos foram revelados em meio a espantos e risos. Um carinho pelo já vivido foi tomando conta delas . Tinham tanta vida para trás que a idéia de interrupção ou ameaça era descabida. Muitas vezes tiveram vontade de chorar baixinho. Nessas horas abraçavam-se com braços e pernas como se fossem todas crianças. Revezaram-se nas histórias. Cada hora uma falava. Às vezes cochilavam, mas logo voltavam. Queriam estar juntas, alertas, inteiras. Bobagens, palhaçadas, piadas. Gargalhar no escuro é maravilhoso. De repente alguém gritava: Pára de empurrar! Seu pé tá gelado! ... Rir no escuro é fantástico. É libertador e revigorante. É experimentar soltura, coragem diante do abismo, uma força nova. Rir no escuro é uma espécie de acalanto. Um estardalhaço apaziguador. Quando rimos no escuro cantamos para a vida. E foi assim, que elas pegaram no sono, sorrindo. Acordaram serenadas. Eram fortes porque sabiam fortalecer-se.
Não foi a primeira vez nem seria a última que dormiram juntas na cama imensa. Dormiram juntas, emboladas, amparadas uma na outra toda vez que a vida bateu forte, toda vez que a dor foi indizível, toda vez que os silêncios e as palavras só podiam ser pronunciadas entre elas, toda vez que as certezas abaladas só seriam restauradas por elas, toda vez que as lembranças sagradas só poderiam ser compartilhadas com elas. Muitas vezes dormiram chorando, encolhidas, feridas. Nessas noites não falavam nada apenas certificavam-se de que não estavam sós. Outras vezes dormiram juntas porque estavam felizes demais e precisavam compartilhar.
Era um ritual. Era mais que velar febres ou mal estares. Era cuidar da alma, dos laços invisíveis, da história familiar. Era zelar pela união, pela sanidade, pela inequívoca cumplicidade do sangue, pela eloqüência das entranhas, pela integridade da memória, pelo sonho de continuidade.
As mulheres conseguem inventar espaços mágicos, círculos poderosos com fogueiras ancestrais, tendas vermelhas, varandas coloniais, salas de jantar, cadeiras de balanço. As mulheres buscam na troca, na proximidade e no amparo mútuo as saídas, as respostas, a cura. É um movimento evolucionário de proteção e resguardo. Nesses lugares são trocados segredos, sabedorias, senhas, mantras, orações, receitas, simpatias, vivências. Nessas horas elas são uma só. Coração, útero, alma. Buscam o feminino primordial, mítico. Buscando-se, encontram as mães, as avós, as filhas, as amigas, as deusas, a lua, a terra, a água. Amparando-se mantêm de pé toda uma linhagem e projetam-se no futuro para novas gerações.
A cama da mãe é um desses lugares. Tão simples, tão prosaico, tão próximo. As conversas ou os silêncios no escuro são celebrações generosas e redentoras. As gargalhadas, as tagarelices, os soluços, as angústias compartilhadas vão tecendo uma colcha fabulosa que envolve, protege, acalma. Acolher é um verbo da mulher; coisa de mãe, de filha, de amiga. Coisa de quem se desnuda, de quem gera, de quem sangra. Coisa de quem tem corpo feito para receber fluidos, sementes, vida. Coisa de quem incha, gesta, pare, amamenta. Coisa de quem ouve silêncios, lê olhares, sonha sinais, intui, pressente. Coisa de quem crê em romances, amolece de desejo, palpita de alegria. Coisa de quem acredita em juras, em sacramentos, em lealdades. Coisa de quem trabalha, cria, agrega, protege.
O aconchego e a cumplicidade, a compaixão e a ternura transformam qualquer espaço em templo seja ele caverna, manjedoura, cozinha, quarto de amiga, pátio de recreio, mesa de restaurante, banco de praça, casa de avó, cama de mãe.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
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